Desde há muito tempo, o blumenauense tem um sonho de Ícaro. Nem sempre se olha o céu por aqui com cara de assustado, amedrontado com a chuva que irá cair. Para alguns, o céu é o limite do velho desejo de poder domar a arte de se fazer um pássaro e voar. Seja aprendendo a pilotar os possantes aviões ou buscando um dia recebe-los de todas as partes do Brasil e do mundo, Blumenau também tem seu cantinho reservado nas histórias da aviação em nosso estado.
E, se navegarmos por estes sonhos, quantas histórias foram escritas por aqui. Do planador pioneiro que queria sair do chão e não domou-se no ar numa manhã de vento em Gaspar, passando por um pouso visionário num pasto na Itoupava Seca e o deslumbre que fascina e convida pessoas hoje e sempre para desbravar os céus da cidade-jardim e do Vale, a aviação em Blumenau pode parecer assunto meramente comercial e político, mas escreve uma página de teimosia, determinação e poesia, contada por quem sonha em ser mais um Ícaro a voar por ai.
O primórdio: Um planador para decolar ideias
Já fazia algum tempo que alguns blumenauenses sonhavam em voar. Seis anos antes do pouso histórico, a cidade assistiu o primeiro cruzar de uma aeronave pelo céu. Tratava-se de um hidroavião alemão marca Dornier Wal que conduzia o ex-chanceler Hans Luther. Foi em novembro de 1926, despertando curiosidade em todos, especialmente num grupo que criaria naquele ano, numa reunião no Bar e Restaurante de Oscar Gross, o primeiro grupo destinado a entender a arte de voar: O Fligerbund Blumenau, ou Sociedade Blumenauense de Aviação.
Tamanha era a ambição de desbravar os ares que os entusiastas da associação ousaram ir além na história e tentarem ser os primeiros a sair do chão num equipamento de voo, talvez no estado inteiro. A ideia era construir um planador, veículo sem motor que aproveita as correntes de ar para manter-se voando. Uma ideia ousada para aqueles loucos tempos, mas muito possível para a associação, que contava com a ajuda de colaboradores e empresários da cidade, muito afim de participar da construção do que era conhecido como o primeiro planador do Brasil.
Batizado de Phoenix (ave da mitologia que durava séculos e, se queimada, renascia das cinzas) pelo Pastor Enders, um dos grandes entusiastas da associação, o planador tinha uma aeronave leve de 11 metros de envergadura e 8,7 quilos de peso por metro quadrado. Não possuía cabina fechada e não seria rebocado, mas sim atirado em um penhasco para buscar as correntes do ar. No entanto, a aventura de voar durou pouco.
No lançamento inaugural, em abril de 1927, o sr. Muetze, um ex-aviador de guerra alemão que atuou nos frontes da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) ignorou os fortes ventos que faziam naquele dia no local do voo, um campo localizado na atual cidade de Gaspar. O planador decolou bem, mas começou a perder altura rapidamente até se espatifar no chão. O piloto não se feriu, mas a aeronave ficou muito danificada. Chegou a ser recuperada posteriormente, mas sumiu de cena com o passar do anos.
Vale lembrar que, em janeiro daquele mesmo 1927, os blumenauenses puderam contemplar ainda naquele ano o voo pioneiro que cruzou a cidade levando consigo o então ministro de viação e obras públicas Victor Konder, a de um hidroavião, também no modelo Dornier Wal alemão do ex-ministro Luther, em trajeto escolhido pelo próprio Dr. Konder para que sobrevoasse a cidade. Era o voo que marcava o início da aviação comercial no Brasil passando por nossas cabeças. No entanto, outra simples passagem, mas nenhum pouso.
Veja um trecho deste voo, a terceira parte do vídeo, com a passagem por Blumenau (vídeo em quatro partes pode ser visto no YouTube):
1932: O avião que assombra e deslumbra
Usar o ar ao seu favor nunca deixou de sair do pensamento dos entusiastas de Blumenau e nem mesmo da classe comercial, que via nele um importante aliado para atingir-se grandes distâncias com mercadorias ou passageiros. Havia-se, em 1932, o plano de instalar-se um serviço regular de voos comerciais entre Blumenau e São Paulo que seria controlada por uma empresa paulista. Era necessário verificar a viabilidade do trajeto até o Vale do Itajaí. Era o momento esperado há tempos por muitos blumenauenses que queriam ver de perto aquela máquina voadora que só viam em filmes, livros e bem a distância.
A ideia ganhou corpo e até mesmo uma pista de pouso. Cativado pela iniciativa, o então prefeito Antônio Candido de Figueiredo conseguiu um entendimento com o sr. Luiz Boettger para o uso de uma grande área de pastagem as margens do Itajaí-Açu, em local onde hoje está a Rua Cel. Federsen, na Itoupava Seca. O campo de pouso foi preparado pela prefeitura e a data para o pouso foi assinalada: 7 de maio (ou 5 de maio, como constam alguns outros registros). Restava apenas aguardar o dia, e provavelmente todas as reações possíveis vieram, de ansiedade à espanto, de deslumbramento a medo da tal maquina que voa como um pássaro.
Segundo telegramas vindos de São Paulo, o avião deveria pousar em Blumenau por volta das 16h no campo preparado para o pouso. Mesmo com a chuva daquele dia, mais de 100 pessoas já se achavam a postos para contemplar o momento único. Houve um atraso por causa do mau tempo (uma tempestade na altura de Jaraguá do Sul forçou uma mudança de rota), mas por volta das 18h daquele dia eis que aquela misteriosa máquina voadora, despertadora de curiosidades, fulgia nos céus, acompanhado do som característico do motor que rompia o silencio ansioso dos presentes.
Era o avião, um biplano britânico De Havilland, modelo Moth DH 60 equipado com um motor de 80 HP e que podia voar a 170 Km/h tranquilos. No comando, o capitão Holland, tendo como passageiro o sr. Joachim Von Ribbeck, organizador do futuro Aereo Lloyd Iguassu Fluggesellschaft, a companhia a operar a rota. O cônsul alemão em Blumenau, Otto Rohkohl foi pessoalmente a pista receber a dupla recém-chegada. As pessoas olhavam deslumbradas a máquina em terra, algumas extasiadas com aquele aparelho mais pesado que o ar e que voava como um colibri, outras espantadas e outras ainda empolgadas por ver diante dos olhos o que só viam a distância ou em fotos e filmes, permeando a imaginação.
A dupla pernoitou na cidade, seguindo viagem na manhã seguinte para sobrevoar Brusque e Florianópolis. A linha aérea Blumenau-São Paulo não daria certo, mas outra rota, entre a cidade e Curitiba seria aberta pelo mesmo Lloyd em 1933, permanecendo em atividade por algum tempo. Nos anos 50, com a aviação comercial brasileira já bem mais difundida, a cidade era servida com voos da TAC (Transportes Aéreos Catarinense) partindo do Aeroporto de Itajaí (então Aeroporto Salgado Filho). O prestigio era tamanho que a empresa chegou a homenagear a cidade com um cartão comemorativo ao centenário de Blumenau, em 1950.
A TAC foi incorporada pela Cruzeiro do Sul em 1966, já o antigo Aeroporto Salgado Filho cresceu, mudou seu nome para homenagear o Dr. Victor Konder e seu voo pioneiro (que cruzara Blumenau em 1927), foi ampliado em 1970 e, hoje, nada mais é do que o já conhecido (e muito usado pelos blumenauenses) Aeroporto Internacional de Navegantes.
O aeroclube e o Quero-Quero: Queremos voar
Mas quem pensa que tudo em matéria de aviação se restringiu para os lados de fora de Blumenau engana-se redondamente. Em 1941, por decreto do então prefeito municipal (e grande incentivador e idealizador da ideia) José Ferreira da Silva, era criado na cidade o Aeroclube de Blumenau, entidade que seria responsável pela formação de pilotos e a difusão das técnicas e cultura aeronáutica em nossa região. Os primeiros encontros da entidade aconteciam em sala alugada no Clube Nautico América, sob instrução de Dauto Caneparo, instrutor de voo vindo de Florianópolis.
Anos depois, o ACB mudou de lugar aonde hoje muitos ainda chamam corriqueiramente de campo da aviação. Uma grande área as margens da Rua Dr. Pedro Zimmermann, onde as aulas praticas e teóricas poderiam caminhar juntas e com mais conforto. Era o embrião do que seria, em 1970, a peça-chave para a cidade voltar a ser guarnecida de voos regulares para São Paulo, nascia ali o Aeroporto de Blumenau, ou por conta da grande presença de Quero-Queros pela planície, o Aeroporto Quero-Quero, responsável por ser o ponto de ligação da cidade-jardim com a terra da garoa, ao menos o que se planejava e se fez.
No ano seguinte, a pista recebia um visitante ilustre: O EMB 110 Bandeirante, que pousava em Blumenau para uma exibição daquela que era a primeira aeronave construída no Brasil. Era apenas o prelúdio do que viria anos depois. Nos anos 80, a Rio Sul começou a operar voos comerciais para Blumenau com aviões Bandeirante. A TAM assumiria a rota nos anos seguintes, empregando aeronaves Cessna Caravan e os Fokker 27 e 50. Estávamos na rota comercial, mesmo com uma estrutura tímida que era dividida com os alunos do Aeroclube, mas eram tempos dourados de quando podia sair de Blumenau direto para São Paulo pelos ares.
No entanto, apesar de nobre, a iniciativa foi abreviada por conta da modernização da frota da empresa paulista, que passava a utilizar os jatos Fokker 100 para voos domésticos de longo percurso. Para um jato daquele porte era mais do que necessária a ampliação da pista, além de melhorias no terminal de carga e passageiros. Infelizmente, as ideias caíram por terra e a TAM deixou a cidade, ainda mais baqueada pela queda de um Fokker 100 em uma área residencial de São Paulo, em 1996 (Voo TAM 402).
Mesmo administrado pelo Seterb nos dias atuais, o Quero-Quero é praticamente um reduto dos poucos e valentes jovens e moças do Vale que teimam em desafiar as alturas fascinados pela arte de voar. Enquanto as autoridades e a classe empresarial se batem em busca do retorno dos voos comerciais, os pequenos Cessna, Neiva (agrícolas), Piper e os Paulistinha sobem e descem a pista que ladeia a Dr. Pedro Zimmermann. Marcas de quem continua os antigos sonhos de visionários de anos atrás, que sentados na mesa de um bar sonhavam como Ícaro.
Abaixo, alguns cliques de outros tempos no Quero-Quero e no Aeroclube (cortesia: Antigamente em Blumenau):
Os blumenauenses ainda olham para os céus admirando os aviões que cortam nosso espaço aéreo. Seja os helicópteros como o Arcanjo e tantos outros, jatos rumando a grandes centros ou até os pequenos aviões do Aeroclube com futuros pilotos galgando os ares realizando o sonho de gerações de ontem e hoje.
Ainda queremos voar, queremos estar no centro do voo nacional com nosso aeroporto (e que assim seja no futuro), mas sem esquecer de uma história teimosa que começava com um planador, deslumbrava com um biplano inglês e seguia-se com a insistência de usarmos o ar ao nosso favor, para nos ligar ao Brasil e para dominarmos o ar como os pássaros que gorjeiam nossos campos verdes.
É, o blumenauense é um eterno Ícaro, e assim o continuará por muito tempo.
André, belo registro sobre o primeiro pouso em Blumenau.
A viagem inaugural foi prestigiada pelo diretor gerente da empresa aérea, Sr. Felinto Jorge Eisenbach.
O relacionamento da Aero Loyd Iguassu com Blumenau era tão cordial, que no dia 14 de maio de 1933, durante uma grande festa na Sociedade dos Atiradores, atual Tabajara T.C. um avião da empresa sobrevoou o local com faixas saudando os participantes.
Adalberto Day cientista social e pesquisador da história em Blumenau
Prezados André Bonomini e Adalberto Day,
parabéns pelo brilhante trabalho, resgatando uma página quase esquecida da aviacäo brasileira.
Gostaria de pedir permissao para utilizar algumas fotos de 1932 para um trabalho de pesquisa sem fins lucrativos. E tenho uma pergunta: a foto muito bem restaurada com Otto Rohkohl e André Durante é bonita demais para se acreditar. É possível ver o original tb? Obrigado e abs.
Olá, Fabio!
Autorizado, claro! Não esquecendo, naturalmente, os créditos, que sempre ajudam.
ALias, o André Durante foi o cara que fez a restauração da foto, como está creditado (deve estar faltando um parêntesis)
Pode tocar ficha, é uma história que merece muito ser espalhada por ai!