Berlim, 30

Era um dia 9 como esse quando Gunter Schabowski cometeu a maior trapalhada governamental do mundo comunista no período da Guerra Fria: as mudanças radicais por trás da cortina de ferro pediam uma medida drástica por parte dos alemães-orientais e a confusão da cúpula do partido comunista, perdida e intransigente, deixou Gunter sem ter o que responder a uma jornalista que perguntava-lhe sobre a abertura das fronteiras com a Alemanha Ocidental.

De repente, Gunter entrega sem mais nem menos: “Do que eu sei agora, imediatamente”. E ali a história começaria a ser escrita, quase que sem querer. O que já era festa em torno do muro, resultado dos protestos dos últimos dias, tornou-se um carnaval fora de época e um show de emoção pura de pessoas que buscavam o que soava-se óbvio: rever parentes e amigos que moravam no outro lado de Berlim.

“Do que eu sei agora, imediatamente”: palavras de Schabovski que decretavam o fim do Muro de Berlim e o que, sem uma ordem as pressas, poderia ter acabado em um banho de sangue (Reprodução)

Era a fissura final da cortina de ferro que Winston Churchill cantava em um discurso nos EUA no período pós-guerra. Acobertada pelas mobilizações patrióticas, a economia e modo de vida dos alemães-orientais sob o governo de Erich Honecker já não eram a maravilha propagandeada há anos pelo partido. Os investimentos na proteção de fronteiras e vigilância da vida da população por meio da Stasi (política política) tomavam conta de praticamente todo o orçamento do país, típico de outras ditaduras coirmãs do regime.

Bastou uma fagulha, aquela que em 1986 permitiu uma debandada de “fugitivos” na fronteira entre a Hungria e a Áustria (o chamado Piquenique Pan-Europeu), para que tudo começasse a ruir rapidamente. Nem mesmo as festividades dos 40 anos de edificação da Alemanha Oriental abafaram o que já não dava para segurar, as mudanças estavam a caminho e uma juventude cansada da prisão em que viviam desde 1961 foi as ruas correndo o risco das metralhadoras e da violência fanática das forças repressivas do governo.

O cruzar frenético de pessoas na fronteira entre Áustria e Hungria durante o Piquenique Pan-Europeu, em agosto de 1989. Era o prelúdio do que aconteceria em Berlim, fruto das mudanças que varriam o leste da Europa e chegariam aos alemães-orientais (Picture Alliance)

E aquela noite de 9 de novembro poderia ter acabado de uma forma completamente diferente. Uma notícia dada de forma errada – sem saber quando, de fato, o muro seria aberto – poderia ter feito de um momento histórico converter-se em uma verdadeira matança com a total desinformação dos guardas de fronteira. Era a regra que valia desde o erguimento do muro da vergonha, a de “quem tentar passar, toma tiro”, simples e sem perguntas. E isso se você sobrevivesse as barreiras montadas nas cercanias do muro.

Nada disso aconteceu, e com os dias passando, a travessia de centenas virou milhares. Gente que, na sua maioria, não fugia de um lado, mas ia apenas para ver, se embasbacar com o que era a Berlim ocidental amaldiçoada do outro lado do mundo: um exemplo do consumo e modernidade proporcionada pelos marcos alemães capitalistas. Entre reencontros recheados de lágrimas de parentes e amigos, o deslumbre de um universo então proibido, famigerado e acobertado.

Como foi linda aquela noite… e não dá pra mentir que os processos seguintes deram esperança a um mundo cansado da polarização da guerra fria. Helmut Kohl comprou a briga desde o início pela reunificação e acabou vencendo com méritos em 1990, quando a Alemanha passou a ser uma só. E os desafios não eram poucos: reorganizar um país dividido de forma social, econômica e estrutural. Não raro, a Alemanha tinha a maior concentração de guindastes por metro quadrado, sobretudo em Berlim.

Checkpoint Charlie, no centro de Berlim, um dos últimos símbolos da existência da fronteira. Hoje monumento histórico, mas que de alguma forma lembra no ar a ainda existente divisão entre orientais e ocidentais que persiste de forma abstrata, mas presente (Reprodução)

No entanto, o tempo passou, e mesmo com os avanços que cercam a vida econômica e nacional da Alemanha, ainda nota-se que a divisão persiste como uma eterna sequela. Alemães-orientais ainda são, em mente, os mesmos “alemães-orientais” de outrora, um nó psicológico que não passa com o tempo ou com medidas governamentais. Um problema social antigo, uma divisão difícil de superar ainda nos dias atuais e que torna-se um vulto diante da história escrita desde aquele dia 9.

Hoje, em festas e celebrações, os alemães lembram o dia em que, de fato, começaram a pensar como um país só, independente se a divisão mental de “um lado e outro” persiste. A história escrita entre um muro e o mundo merece reverencia e reflexão, não só no ontem mas também no hoje e no amanhã, entre suas repercussões e consequências ainda existentes.

O resto é literatura, de um tempo em que o cair de um muro era o respiro de uma esperança perdida, aquela que falta nos dias de hoje.

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