Era um dia 9 como esse quando Gunter Schabowski cometeu a maior trapalhada governamental do mundo comunista no período da Guerra Fria: as mudanças radicais por trás da cortina de ferro pediam uma medida drástica por parte dos alemães-orientais e a confusão da cúpula do partido comunista, perdida e intransigente, deixou Gunter sem ter o que responder a uma jornalista que perguntava-lhe sobre a abertura das fronteiras com a Alemanha Ocidental.
De repente, Gunter entrega sem mais nem menos: “Do que eu sei agora, imediatamente”. E ali a história começaria a ser escrita, quase que sem querer. O que já era festa em torno do muro, resultado dos protestos dos últimos dias, tornou-se um carnaval fora de época e um show de emoção pura de pessoas que buscavam o que soava-se óbvio: rever parentes e amigos que moravam no outro lado de Berlim.
Era a fissura final da cortina de ferro que Winston Churchill cantava em um discurso nos EUA no período pós-guerra. Acobertada pelas mobilizações patrióticas, a economia e modo de vida dos alemães-orientais sob o governo de Erich Honecker já não eram a maravilha propagandeada há anos pelo partido. Os investimentos na proteção de fronteiras e vigilância da vida da população por meio da Stasi (política política) tomavam conta de praticamente todo o orçamento do país, típico de outras ditaduras coirmãs do regime.
Bastou uma fagulha, aquela que em 1986 permitiu uma debandada de “fugitivos” na fronteira entre a Hungria e a Áustria (o chamado Piquenique Pan-Europeu), para que tudo começasse a ruir rapidamente. Nem mesmo as festividades dos 40 anos de edificação da Alemanha Oriental abafaram o que já não dava para segurar, as mudanças estavam a caminho e uma juventude cansada da prisão em que viviam desde 1961 foi as ruas correndo o risco das metralhadoras e da violência fanática das forças repressivas do governo.
E aquela noite de 9 de novembro poderia ter acabado de uma forma completamente diferente. Uma notícia dada de forma errada – sem saber quando, de fato, o muro seria aberto – poderia ter feito de um momento histórico converter-se em uma verdadeira matança com a total desinformação dos guardas de fronteira. Era a regra que valia desde o erguimento do muro da vergonha, a de “quem tentar passar, toma tiro”, simples e sem perguntas. E isso se você sobrevivesse as barreiras montadas nas cercanias do muro.
Nada disso aconteceu, e com os dias passando, a travessia de centenas virou milhares. Gente que, na sua maioria, não fugia de um lado, mas ia apenas para ver, se embasbacar com o que era a Berlim ocidental amaldiçoada do outro lado do mundo: um exemplo do consumo e modernidade proporcionada pelos marcos alemães capitalistas. Entre reencontros recheados de lágrimas de parentes e amigos, o deslumbre de um universo então proibido, famigerado e acobertado.
Como foi linda aquela noite… e não dá pra mentir que os processos seguintes deram esperança a um mundo cansado da polarização da guerra fria. Helmut Kohl comprou a briga desde o início pela reunificação e acabou vencendo com méritos em 1990, quando a Alemanha passou a ser uma só. E os desafios não eram poucos: reorganizar um país dividido de forma social, econômica e estrutural. Não raro, a Alemanha tinha a maior concentração de guindastes por metro quadrado, sobretudo em Berlim.
No entanto, o tempo passou, e mesmo com os avanços que cercam a vida econômica e nacional da Alemanha, ainda nota-se que a divisão persiste como uma eterna sequela. Alemães-orientais ainda são, em mente, os mesmos “alemães-orientais” de outrora, um nó psicológico que não passa com o tempo ou com medidas governamentais. Um problema social antigo, uma divisão difícil de superar ainda nos dias atuais e que torna-se um vulto diante da história escrita desde aquele dia 9.
Hoje, em festas e celebrações, os alemães lembram o dia em que, de fato, começaram a pensar como um país só, independente se a divisão mental de “um lado e outro” persiste. A história escrita entre um muro e o mundo merece reverencia e reflexão, não só no ontem mas também no hoje e no amanhã, entre suas repercussões e consequências ainda existentes.
O resto é literatura, de um tempo em que o cair de um muro era o respiro de uma esperança perdida, aquela que falta nos dias de hoje.