Som n’A BOINA #03: Cauby (1976) Uma pérola esquecida no ostracismo

(Douglas Sardo)

O amigo leitor já deve ter percebido que temos certo carinho por trabalhos e artistas esquecidos ou subestimados, não? Abrimos com Low, um caso típico de álbum que tudo mundo conhece, mas poucos realmente escutam. Depois veio o Badfinger, uma banda que por diversas razões acabou em tragédia antes de alcançar todo seu potencial.
Hoje continuamos nessa trilha, com um disco bastante esquecido de ninguém mais ninguém menos que o grande Cauby Peixoto, que nos deixou em 2016.

Um dos maiores nomes da música brasileira na era do rádio, Cauby viu sua carreira entrar em declínio na segunda metade dos anos 1960, quando se firmou um novo cenário no som nacional com a Jovem Guarda e a Tropicália. Também contribuiu para a situação o tempo que o cantor gastava na administração de sua casa noturna, a Drink. De 1966 até 1971 foram somente três LPs, sendo o último desse período o fraco O Explosivo Cauby de 1969. Mal gravado, e com repertório ruim, o disco passou batido e é um dos mais fracos do cantor.

O tempo dedicado a carreira era menor, mas ficava evidente que Cauby não estava conseguindo se adaptar à nova realidade da música brasileira. Até então ele sempre se valera de sua voz fantástica e sua presença de palco para brilhar. Mas agora isso já não bastava, seu estilo over não se encaixava muito bem às músicas que eram a sensação do momento. Além disso, o cantor teve outra dificuldade que sempre permeou sua carreira e a de tantos outros intérpretes fantásticos: A má escolha de repertório. Trocando frequentemente de produtores, Cauby acabava caindo nas mãos erradas, e cantando músicas que não estavam a altura de seu talento.

Em busca do sucesso perdido

Cauby se apresenta no Chacrinha, nos anos 70. A chegada de novos estilos na música nacional quebrou as pernas do cantou, que durante a década procurava reencontrar-se com o público e aperfeiçoar seu repertório e arranjos a um novo consumidor de música (Globo)
Cauby, de 1976. Selo Som Livre (Reprodução)

Tentando se reinventar, o cantor buscou sintonia com os nomes que se destacavam na época, e gravou em 1972 o disco Superstar pela Odeon, com produção de Milton Miranda e com composições de nomes como Caetano Veloso, Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Roberto e Erasmo Carlos, entre outros, algo parecido com o que aconteceria com o badalado Cauby! Cauby! anos mais tarde. O álbum representou sim um passo à frente, principalmente se comparado a má impressão deixada em 1969. Mas faltou alguma coisa nesse trabalho, como se as composições acabassem brilhando mais que o cantor. Os arranjos não ficaram muito bons e Cauby ainda estava tentando se localizar.

Seguiu-se um novo hiato de lançamentos, enquanto o cantor se apresentava frequentemente na televisão e em casas noturnas. O programa MPB Especial, de 1973 pela TV Cultura, é um exemplo. Nele podemos ouvir Cauby falando justamente sobre o momento de sua carreira, a busca por uma nova abordagem, em detrimento de composições ruins, como ele mesmo disse no programa.

Em 1976, após iniciar uma parceria duradoura com Ângela Maria no disco Angela Maria e Cauby Peixoto no Canecão, surge a oportunidade de gravar um novo álbum, dessa vez pela Som Livre, e com produção do grande compositor Adelino Moreira. O resultado foi simplesmente um biscoito fino da música brasileira. Cauby é sem dúvidas um dos melhores álbuns do cantor, com repertório bem escolhido, excelente produção, arranjos excelentes, e com o cantor finalmente se encontrando novamente.

Eis a relação de faixas o álbum:

1 – Perdão Mangueira (Rutinaldo e Adelino Moreira)

Se só tivesse gravado essa faixa já valeria o disco. Um samba obra-prima do mestre Moreira com parceria de Rutinaldo, em gravação antológica de Cauby.

Juan de Dios Filiberto, um dos grandes gênios do tango argentino, da qual Cauby reverencia em Lencinho Querido (Reprodução)

2 – Lencinho Querido [El pañuelito] (Música – Juan de Dios Filiberto, Letra – Gabino Coria Peñaloza)

Ótima versão de uma bela música de um dos mestres do tango, Juan de Dios Filiberto. Como sempre Cauby mostra sua versatilidade, capaz de cantar vários estilos. Belos arranjos, e a voz perfeita para um estilo tão dramático.

3 – Pecado Ambulante (Adelino Moreira)

Mais uma do grande Adelino, um samba-canção gravado originalmente no final dos anos 1950 por Carlos Augusto. Tempos depois foi lançada também por Nelson Gonçalves. Seria exagero dizer que Cauby gravou a versão definitiva aqui, mas as orquestrações deram um ar contemporâneo para uma música que evoca a época do rádio.

4 – Onde anda Você (Hermano Silva, Vinícius de Moraes)

Como dito anteriormente, Cauby já havia gravado uma canção de Vinícius de Moraes, a clássica Se Todos Fossem Iguais a Você, parceira do poetinha com Tom Jobim, para o disco Superstar. A primeira pode ser mais famosa, mas essa versão de Onde anda Você ficou sublime, uma das melhores do disco.

5 – A Volta do Boêmio (Adelino Moreira)

Talvez o único erro do disco. Não é que a versão de Cauby para esse clássico eternizado na voz de Nelson Gonçalves seja ruim… É que a versão de Nélson é insuperável, simples assim.

Nelson Gonçalves, recordado em duas faixas do LP. Uma delas, a versão da famosa A Volta do Boêmio, cujo Cauby tentou, mas não conseguiu superar ao colega de profissão (Reprodução)

6 – O Surdo (Paulo Rezende, Totonho)

Essa música já era clássica na Voz do Samba de Alcione em 1975. Mas a versão de Cauby não faz feio não, longe disso…

7 – Jura-me [Jurame] (María Grever)

Belíssima versão desse bolero simbólico da mexicana María Grever, gravado originalmente nos anos 20. Mais uma variação de estilo, como Cauby sempre gostou.

8 – Duas Contas (Garoto)

Obra-prima do gênio Aníbal Augusto Sardinha, vulgo Garoto, um dos maiores e mais esquecidos talentos da música brasileira. Aqui fica bem evidente a questão da ótima escolha de repertório do disco. Destaque também para o arranjamento maravilhoso, e claro, a interpretação inesquecível de Cauby.

9 – Vila Sombria (Adelino Moreira)

Outra canção remanescente da época do rádio. Este tema de Adelino Moreira foi gravado pelas grandes Dircinha Batista e Núbia Lafayette em fins dos anos 50 e início dos 60. Belíssima gravação que dá o tom para o final do disco, amplamente dominado pelo samba.

A bela Nubia Lafayette (Reprodução)

10 – Medley: Mal-me-quer (Cristóvão de Alencar, Newton Teixeira) / Avenida Iluminada (Newton Teixeira, Brasinha)

Um Pot-Pourri com duas marchinhas de Cristóvão de Alencar. Tem gente que diz que Cauby não sabia cantar samba. Sei…

11 – O que foi que eu fiz (Augusto Vasseur, Luiz Peixoto)

Samba que remete aos anos 1930, gravado naqueles idos por Elisinha Coelho (mãe do apresentador Goulart de Andrade). Outra pérola muito bem colocada no álbum.

12 – Cansei (Raul Sampaio, Celso Castro)

O disco encerra com esse samba singelo de Raul Sampaio (compositor de Meu Pequeno Cachoeiro) e Celso Castro. Mais uma vez o trabalho dos músicos é excelente, e a voz de Cauby muito bem colocada.

Infelizmente, esse não foi o disco que alavancou novamente a carreira de Cauby, papel este que ficou para o interessante Cauby! Cauby! de 1980. Mas esse disco de 1976 é melhor, trazendo o cantor numa pegada anos 70 irresistível.

Um álbum que entra fácil fácil na minha lista de melhores da música brasileira, e que acabou esquecido. Foram poucos os momentos de sua carreira em que Cauby Peixoto combinou tão bem sua voz perfeita a um repertório extremamente afiado e produção de primeira. Um discaço!

(Reprodução)

O SnaB fica por aqui. Até sexta-feira que vem com mais sonzeira! Grande abraço!

(Agradecimentos ao canal de Keke F. Salgueiro por contribuir com a inspiração)

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