Fusca, 1993: Itamar e a “reinvenção da roda”

Uma receita conhecida para dinamizar a economia. Há 25 anos atrás, atendendo ao pedido do presidente-fanático Itamar Franco, a Volkswagen retornava com a produção do Fusca. No discurso do acesso ao carro popular, o pedido de um fã do besouro oculto e uma série de atravancos de um veículo que não estava mais de acordo com seu tempo (Reprodução)

Num país onde a economia parece não dar sinais de vida quando internada na UTI, qualquer ideia mirabolante pode até funcionar quando se quer dinamiza-la e faze-la girar ao seu favor. Em qualquer país em crise, se não há algo mais inteligente, é uma via de regra de qualquer manual de recuperação econômica, e muitas vezes ou são simplesmente mirabolantes ou complicam ainda mais uma situação vigente.

No Brasil de 1993, qualquer boa ideia era bem-vinda para fazer o brasileiro comprar, depositar divisas na economia e fazer a roda girar em um momento delicado de recuperação política e econômica. Depois do golpe econômico dado por Fernando Collor, o bastão estava nas mãos do mineiro Itamar Franco, seu vice, que tinha nas mãos o dever de conduzir o processo até o fim do mandato vigente – em 1995 – prosseguindo com a recuperação econômica.

Empossado depois do Impeachment de Collor, Franco tinha uma missão gigante: recuperar de vez a cambaleante economia brasileira. Quis começar com o mercado de automóveis, e foi direto naquilo que cativava o seu coração e o de sua namorada: o Fusca (Reprodução)

Na pauta deixada por Collor na mesa do Palácio do Planalto, um delas estava sendo conduzida plenamente há algum tempo no país: a abertura do mercado aos carros importados, coisa que satisfazia o caçador de marajás ao ver modelos moderníssimos (a exceção do Lada Laika, que só tinha o importado entre suas características) dividindo o mercado de igual para igual com o que tachava violentamente como carroças. E nesta ciranda, o preço do carro mais barato não era lá algo que podia se chamar de acessível a camadas menos abonadas da população, que viam o veículo como um bem distante do poder de compra.

Foi o que indiginou Itamar depois de uma voltinha pelo Salão do Automóvel de 1992, ao perceber que o modelo mais acessível no preço custava cerca de US$ 23 mil (os preços dos carros eram, naquele tempo, grafados em dólares). E ali, o presidente mineiro teve um estalo: dinamizar a economia passa também pelo acesso ao carro de forma mais simples e barata. Estava pronto o terreno ideário que Itamar construiu para a volta de uma das suas – e de de outros tantos – paixões: o Fusca.

Em 1993, Volks e Ford estavam quase no mesmo teto, na aventura chamada de Autolatina, iniciada no fim dos anos 80 como uma ideia mirabolante das duas montadoras (Reprodução)

Sim, este ano, a volta do besouro as linhas de montagem da Volkswagen (à época, atuando em conjunto com a Ford na chamada Autolatina) completa 25 anos de uma história tão mirabolante quanto interessante. A ressurreição do Fusca teria em si seus lances de discordância, incompreensões e um tremendo desafio para colocar um carro com concepção de mais de cinco décadas de volta a montagem em plantas modernas e que já ventilavam injeção eletrônica e direção hidráulica há algum tempo. Era uma verdadeira reinvenção da roda, como diz o título, mas o presidente – e fã confesso do besouro mais simpático do mundo – pediu, então bora fazer valer.

Um mineiro teimoso e as lendas da ressurreição

Itamar o dia da volta do Fusca, em agosto. A ideia parecia simples e contava com o aval de Pierre-Alain de Smedt, então presidente da Autolatina. No entanto, outras histórias circulam sob a ambição do então presidente (Reprodução)

Itamar estava determinado. Aquela volta no Salão de 1992 o deixou com uma pulga atrás da orelha e dos cabelos a lá Seu Eugênio. Seu objetivo era trazer ao mercado um carro que pudesse ser acessível a uma camada maior da população, barato, prático e simples de adquirir. No entanto, esta é apenas uma das histórias, já que ela se perde em duas lendas urbanas cabulosas: a primeira, de que Itamar estava afim mesmo de agradar uma fã do carro, sua então namorada Lislie, proprietária de um modelo 1981; a outra é de que Itamar, fã confesso do Fusca, pediu a VW que o carro voltasse para poder comprar um zerinho zerinho!

Lendas a parte, o presidente não media esforços acreditando na sua ideia. Em janeiro de 1993, cinco dias após o Dia Nacional do Fusca (20 de janeiro, portanto era dia 25), vendo que a Volks não dava nenhum sinal de resposta com relação a suas afirmações, Itamar chamou à Brasilia o então presidente da Autolatina, Pierre-Alain de Smedt, para um papinho amigável. E que papo! Bastou uma conversa simples para que Smedt saísse da capital federal com a mesma determinação acordada: o Fusca iria volta sete anos depois de sua primeira morte.

A primeira morte do Fusca, 31 de outubro de 1986. Sufocado por modelos mais modernos, sua saída de mercado foi na hora certa. No entanto, imagens como esta seriam fumaça quando da volta do besouro, sete anos depois (Reprodução)

Segundo conta a história, o Fusca saiu de linha em 1986, minado pela pujança tecnológica dos rivais e do próprio irmão de fábrica, o Gol. As memórias dos funcionários da Volks naqueles dias contam que, na saída do último Fusca da linha de São Bernardo do Campo, foi feito um minuto de silêncio em respeito a história de um carro que desde 1959 era o queridinho de muitos brasileiros e continuava assim sendo para muitos que tinham nele um fiel amigo e inúmeros clubes dedicados a sua memória.

Percausos para voltar ao futuro

Mas não seria uma volta fácil. Para começar, o IPI teria de ser modificado para tornar o carro ainda mais acessível. Em 4 de fevereiro de 1993, Itamar assinava o protocolo do carro popular, que regulava que carros agora chamados de populares teriam a cobrança da alíquota de apenas 0,1%. Estes carros teriam que, obrigatoriamente, ser equipados com motores 1.0 e com preço ao consumidor de US$ 6,8 mil.

Para facilitar o acesso ao carro dito popular, a ideia foi estipular uma faixa de preço para motores de até mil cilindradas. Carros como o Uno Mille entraram na regra e até a Kombi, que não tinha cara de popular mas tinha um motor que enquadrava-se na nova alíquota, entrou na turma dos baratos (Reprodução)

Era a única forma de equiparar os preços de carros nesta faixa, já que com as facilidades dadas para a Volks para a volta do Fusca, Fiat e Chevrolet bateram o pé e exigiram um acordo que não as prejudicasse ao mesmo tempo, especialmente a Fiat, que há algum tempo tinha vantagem neste mercado popular com seu Uno Mille. Marota, a Volks aproveitou e, na mesma leva, colocou a Kombi na mesma regra, o que fez seu preço entre os utilitários continuar sendo muito vantajoso.

Da parte de Brasília, Itamar ia cumprindo a sua parte mesmo peitando outras montadoras e engolindo junto com Smedt as críticas da mídia com relação a volta do Besouro, tachado de antiquado, inseguro e incompatível para uma realidade brasileira que já via nas ruas marcas como BMW, Audi, Peugeot e Renault, todas (e outras mais) com seus modelos mais modernos e atualizados com relação ao mercado mundial. Era um contrassenso para alguns, para outros era uma alegria poder ter peças novas de reposição para seus Fuscas e/ou poderem adquirir um zero quilômetro, tirado da revenda, para satisfazer a necessidade ou a paixão.

O desafio da Volks de recolocar uma linha de produção antiga novamente em funcionamento: equipamentos de fabricação e carros para testes vieram de terceiros (Reprodução)

Mas do lado da Volks, o desafio era muito mais hercúleo do que se imaginava. A linha de montagem tinha sido desativada e desmantelada haviam sete anos. Muito do maquinário do antigo setor, como as prensas, havia sido vendido para fabricantes de peças de reposição e o jeito foi comprar destes mesmo fabricantes as partes que iriam compor o novo modelo.

Recolocar a linha em funcionamento dentro da fábrica da Via Anchieta não era o problema em questão de espaço, já que o Fusca não necessitava de soldas grandes e as poucas modificações mecânicas eram o catalisador e um alternador e os testes eram feitos em Fuscas comprados pela própria VW e que eram usados como cobaias.

Enfim, a volta (com todas as dúvidas)

Juscelino em 1959, Franco em 1993. De diferença, 34 anos. O lugar era o mesmo e a forma de entrada quase um pouco mais contida. Era o sonhado (pelo presidente) ressurgimento do Fusca, que tinha uma missão difícil diante das críticas da imprensa (Reprodução)

Enfim, chegou o dia. Era 23 de agosto de 1993 quando Itamar, naquele sentimento triunfante, entrava na fábrica dentro de um Fusca conversível, imitando a icônica cena de Juscelino Kubitschek em 1959 na planta de São Bernardo do Campo. Para um entusiasta, como ele, era um momento sublime, como voltar ao tempo de jovem militante empolgado com o besouro. Mas ainda tinha quem torcia o nariz para a volta do carro, e a imprensa dava a nota certa com relação ao fato.

A Quatro Rodas foi uma das tantas revistas especializadas a testar o novo Fusca e não economizou nas críticas: antigo, mal acabado e com itens que nos tempos atuais seriam peças de museu, como os estribos laterais. Isto sem contar o preço de US$ 7,5 mil em média, algo que ficava próximo do irmão de fábrica – o Gol 1.0 (ou Gol 1000, como queiram) – e que, perto dos rivais de categoria era item fácil de ser derrubado em um comparativo de preço e vantagens.


Nem mesmo o Lada Laika, que não era lá aquele primor de veículo, tirava palha das vantagens que tinha, mesmo com um desenho tão antiquado quanto:

No entanto, pelas ruas o novo Fusca ia ganhando a sua visibilidade de certa maneira. No lançamento, foi anunciada pela Volks que já havia uma fila de interessados próxima dos 13 mil possíveis compradores e, de certa forma, o besouro ganhava seu espaço, sobretudo em cidades do interior e entre frotistas (como as prefeituras), para onde as vendas do carro eram destinadas, já que competir nos centros urbanos com os adversários mais modernos era praticamente impossível.

O mais curioso eram alguns dos nomes da lista de interessados, que misturavam pessoas comuns a empresários que procuravam uma alternativa mais barata para sua frota e… celebridades! Isso mesmo, pessoas que tinham seu destaque na mídia e poder aquisitivo para comprar carros bem mais luxuosos mas que, por sabe-se lá o motivo, estavam interessadas no Fusca: Palinha (ídolo do São Paulo recém-campeão da Libertadores), o fantástico compositor da MPB Geraldo Vandré e até um nobre da família real brasileira: Afonso de Orleans e Bragança, eram alguns dos nomes que endossavam a relação feita pela própria Volks para proteger, de alguma forma, o carro dos ataques da imprensa.

Até algum tempo, a Prefeitura de Blumenau tinha ainda em operação seus fusquinhas. Pelo menos até onde se sabe. O preço módico para frotistas, especialmente as prefeituras, foi uma forma de melhorar as vendas (Reprodução)

O fim e as reminiscencias 

Infelizmente, as maquiagens para a mídia não podiam esconder que as vendas do Fusca não estavam mais com o vigor de antes no mercado nacional. Ao chegar 1996, esta realidade era ainda mais comprovada, já que o besouro tentava ainda ser um popular entre os populares mesmo com um preço tão próximo do irmão de fábrica, o Gol 1.0, e sem possibilidade de competição com o Mille EP e os recém-lançados Corsa e Palio. Era uma missão suicida e, definitivamente, sua hora tinha chegado.

Itamar não estava mais no poder quando, exatos 10 anos depois da primeira morte, o Fusca era morto pela segunda fez, de forma discreta e deixando a venda para os entusiastas a Série Ouro, com acabamento e equipamentos refinados, como o revestimento interno esportivo do Pointer GTI, mostradores de fundo branco, faróis de neblina e lanternas traseiras escurecidas. Em três anos, foram cerca de 46 mil unidades fabricadas que, somadas ao primeiro período, encerravam os números de produção totais em mais de 3 milhões de Fuscas produzidos no Brasil.

A segunda morte, dez anos depois da primeira. Em 1996, era visível que não dava mais para o Fusca. Sobrou ainda a interessante Série Ouro (abaixo), com itens refinados de acabamento interno e externo. Uma verdadeira raridade nos dias atuais (Reprodução)

Passados 25 anos, Itamar Franco não pisa mais nos corredores do poder. O ex-presidente morreu em 2011 e em seu memorial em Juiz de Fora, na Zona da Mata Mineira, encontra-se o Fusca conversível com o qual entrou triunfantemente na fábrica da Volks naquele agosto de 1993. Pierre-Alain de Smedt saiu da Autolatina depois do fim da joint-venture, em 1995, e se meteu em negócios no ramo da telefonia e importação, além de ter sido presidente da Federação das Empresas da Bélgica, em 2011.

Quando ao Fusca Itamar, o modelo vem aos poucos tornando-se uma pequena raridade em seu formato original, já que muitas de suas peças foram compradas por donos de Fuscas mais velhos para reparar o personalizar o seu, o que torna difícil para qualquer um identificar um autêntico Itamar, a não ser pelo detalhe do cano de descarga, que nos Fuscas pós-1993 está localizado no lado direito, abaixo do para-lamas. Alguns colecionadores já começam, de forma tímida, a procurar o modelo para compra e clubes do Fusca pelo país já o tem como parte de suas agremiações.

Itamar morreu em 2011, aos 81 anos. No entanto, seu memorial em Juiz de Fora MG) guarda com carinho o icônico modelo conversível com a qual entrou triunfalmente na fábrica de São Bernardo do Campo naquele dia de agosto de 1993 (Reprodução)

Se ficou algum mérito de mais esta aventura do besouro pelas terras brasileiras, ao menos a volta do conceito de carro popular pra valer ao mercado automobilístico brasileiro pode ser considerada como sua. Os modelos populares ganharam um impulso maior com sua volta, obrigando as demais montadoras a procurar maneiras de baratear seus modelos e buscar outras parcelas da população que poderiam contar com um carro na sua garagem, coisa que, atualmente, é via de regra no manual de qualquer indústria do setor, especialmente as mais populares.

De resto, apenas outro conto mais entre tantos da vida do Fusca no Brasil. Uma história de reinvenção de roda, descrédito, dúvidas e insistência de um mineiro teimoso, mas que resultou em uma sobrevida das mais curiosas na história do automóvel mundial: quando o velho besouro de guerra voltou para sacudir o trânsito e o mercado de um país inteiro, mesmo sem a jovialidade de outros tempos.

(Reprodução)

Apêndice: Alguns recortes telejornalísticos sobre a volta do Fusca

Abaixo, separei algumas das tantas reportagens que são encontradas no YouTube sobre a volta do Fusca. Praticamente, temos neste apêndice todas as emissoras do país falando sobre o retorno do besouro a linha de produção. Pode estar faltando alguma coisa, mas daqui se parte para mais pesquisas.

Boa viagem!

TV Cultura:

TV Cultura (2):

TV Jovem Pan:

TV Jovem Pan (2):

SBT:

Rede Bandeirantes (Band):

Rede Globo (Fantástico):

Rede Globo (1):

Rede Globo (2):

Rede Globo (3):

CBN (Plantão sobre o fim do Fusca, 1996):

1 comentário em “Fusca, 1993: Itamar e a “reinvenção da roda””

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